quarta-feira, 12 de julho de 2006

Quase corinthiano

Em um prédio de classe média perdido no meio da fumaça da Avenida Pompéia não é muito fácil conhecer pessoas legais, que dirá fazer um amigo. Nem acho que sou uma delas.

Não me lembro como conheci o Jorge (leia-se Ror-rre ou Rorhe), senhor de seus 50 e poucos anos e sotaque carregado de érres e de ésses. Também nunca soube como o argentino veio parar no Brasil e na Vila Pompéia.

O que nos aproximou foi o futebol. Eu, corinthianíssima. Ele, torcedor apaixonado pelo Boca Juniors. Só que antes de qualquer final de Libertadores entre Boca e Palmeiras, o Jorge veio para o Brasil e se tornou palmeirense por aqui. Ele nem imaginava que alguns anos depois a torcida corinthiana adotaria o Boca e vice-versa.

Eu sempre dizia para o Jorge que aqui ele torcia para o time errado. Ele ria e ficava lá meio sem-graça, como se dissesse "agora é tarde" e (juro que não é o coração corinthiano que enxergava) tenho certeza que o Jorge queria mesmo é ter sido corinthiano. Até a mulher tirava um sarro por causa disso.

O Jorge nem morava mais aqui no prédio e meses antes de se mudar descobriu-se com um tumor no cérebro que lhe levou diversas vezes para internações e mesas de cirurgias. Ele escolheu passar seus últimos meses de vida em outro prédio, num bairro mais distante, na Freguesia do Ó, onde ninguém o conhecia. Talvez tenha sido por isso que ele se mudou: para que pudesse ser corinthiano sem que alguém soubesse que o Jorge já tinha sido palmeirense um dia.

Depois que ele se mudou, o encontrei só mais uma vez. Quase nem o reconheci fisicamente por conta dos efeitos dos remédios e do tratamento, mas no meio do Hortifruti ele gritou "Ei, corinthiana!", com seu portunhol inconfundível. Comprei para ele um São Jorge, protetor das famílias, do universo e dos corinthianos, mas não deu tempo de entregar.

Hoje recebemos a notícia de seu falecimento. Morreu no sábado, mas não deu para se despedir porque não teve velório, nem enterro. O Jorge doou seu corpo a uma universidade de medicina para estudos. Quem sabe descubram um coração corinthiano?

Amanhã tem missa e eu vou pisar de novo em uma igreja, coisa que não faço há bons anos. Vou levar para sua mulher e filhos a imagem do São Jorge que eu fiquei devendo para o argentino Jorge. Merecida, pela amizade e por ter me despertado um olhar muito mais carinhoso pelos nuestros hermanos. Muito, muito antes de Carlitos Tevez.

Nenhum comentário: