quarta-feira, 20 de setembro de 2006

Para a paciência dos dois leitores que tenho nesse blog, peço desculpas pela falta de atualização. Mas seria impossível não comentar uma das medidas de segurança nos estádios, anunciadas pela Federação Paulista de Futebol ontem, 19/09.


Pobre Edinho

por Leonor Macedo

Edinho é o apelido que Edmílson ganhou dos primos quando ainda era pequenino e jogava bola pelos terrenos baldios de São Miguel Paulista, na zona leste de São Paulo, onde ainda mora. Época boa aquela, quando a preocupação maior era a chuva que cairia e transformaria o campo improvisado em um tremendo lamaçal. E o jogo rolava na chuva mesmo, tamanha a paixão daqueles meninos pelo futebol. Nem adiantava a mãe ralhar.

Hoje, Edinho tem 18 anos e mal dá tempo de jogar bola ou encontrar os amigos porque, além de estudar, o garoto trabalha como atendente de uma lojinha de R$ 1,99 para ajudar a família. Teve a infelicidade de nascer pobre, assim como boa parte da população paulistana. Ou brasileira. No emprego, ganha um salário mínimo, o que é muito bom para alguém da sua idade, considerando que ainda não terminou o ensino médio e o valor corresponde a renda de muito pai de família ali de São Miguel.

Metade do salário, ele entrega para a mãe, Dona Maria, costureira que deu a luz a cinco filhos. Edinho não é nem mais velho, nem o mais novo. “É o recheio”. O pai, Seu Francisco, é “pedreiro atualmente desempregado”, como se define sempre que perguntado. Como se “atualmente desempregado” também fizesse parte da profissão.

Com a outra metade, o menino compra roupas, tênis e vai ao estádio ver os jogos do Coringão, sua grande paixão. Desde que seu pai, corinthiano de coração, o levou ao estádio pela primeira vez, nunca mais deixou de ir. Devia ser toda aquela emoção, os cantos, a torcida, as bandeiras, a energia, os amigos que havia feito. Ou porque ali, o Edinho de São Miguel era um cara diferente. Não pensava no desemprego do pai, na saudade que sentia da infância, no trabalho do dia seguinte. Ou vai ver era porque ali o Edinho era igual. O fato é que sempre que ele entrava no estádio batia uma vontade de chorar.

E lá ia Edinho, toda quarta, quinta, sábado ou domingo ver o Timão no Pacaembu, no Morumbi, ou no Canindé. Não importava. De vez em quando, os jogos eram duas vezes por semana, mas o dinheiro dava. De arquibancada sempre dava, mas para ele era o melhor setor do estádio. Era lá que dava vontade de chorar.

Ficava junto com os Gaviões da Fiel, com a Camisa 12, com a Coringão Chopp, com a Estopim, com a Pavilhão, e com outros tantos corinthianos. E resolveu se filiar aos Gaviões da Fiel, pelos tantos amigos que tinha feito e que já eram da torcida.

Edinho, como todos os outros corinthianos, preferia que os jogos ocorressem no Pacaembu, mas no caso dele era mais do que uma questão de identidade. São Miguel Paulista é longe. Bem longe. E, apesar de longe, o Pacaembu é o lugar mais próximo para alguém que mora no extremo leste assistir a um jogo. Ainda assim, toda semana era a mesma via crucis: se o jogo era domingo, às 16h, Edinho dava um beijo na testa de Dona Maria antes do almoço, pegava uma lotação e demorava meia hora até a estação de trem. Depois perdia cerca de uma hora e dois minutos de São Miguel até a Barra Funda, passando pelo Brás para uma baldeação. E lá da Barra Funda seguia para o Pacaembu por mais ou menos meia hora a pé. Isso sem contar com o tempo de espera da condução porque de domingo a frota é sempre reduzida.

Mas quando o jogo ainda era de fim-de-semana, o corinthiano conseguia até comer alguma coisa antes de entrar no estádio. Problema mesmo Edinho tinha quando a partida era durante a semana. Aí ele fazia mágica: chegava em cima da hora no estádio, depois de pegar um trem apinhado de gente. E quando o jogo acabava, às 23h40, naquele horário que a transmissão não atrapalha a novela, ele corria feito louco para pegar um ônibus que o levasse até a estação Marechal Deodoro. De lá ele pegava o metrô até o Brás para não perder o último trem até São Miguel, que saía à meia noite. E o caminho do Pacaembu até o Brás tinha que ser percorrido em 20 minutos. Se alguém aí não acredita que isso é possível, o site da CPTM diz que dá.

E ele era um cara de sorte, porque quando chegava lá na estação em São Miguel, perto da uma da matina, e não tinha mais condução até sua casa, ele caminhava para os braços de Dona Maria e nunca aconteceu nada. Sempre escapou ileso também das brigas de torcidas, organizadas ou não, pelos trens. Menino de sorte e de bem.

Aí a Federação Paulista de Futebol, por causa dessas brigas, resolveu implantar umas medidas de segurança para 2007 e ferrou a vida do Edinho. Ele acha bom que alguma coisa seja feita pela diminuição da violência porque um menino da vila onde mora morreu e ele viu o sofrimento da mãe do moleque que nem gostava de futebol. Menino sem juízo, mas que tinha toda uma vida pela frente.

Pelo fim da violência, Edinho nem se importa em ter que se cadastrar de novo na frente do estádio e deixar sua foto, impressão digital, nome, telefone, função, número de RG e endereços, só porque é de uma torcida organizada. Afinal, ele fez isso em sua ficha de filiação lá nos Gaviões da Fiel. Ele não se importa, mesmo sendo uma medida discriminatória, que parte da premissa que todo torcedor organizado é um “sujeito torto”, pelo menos em potencial.

A única coisa que Edinho queria era continuar freqüentando os estádios e a Federação praticamente o proibiu. Porque se ele quiser ficar no espaço mais barato, destinado à torcida organizada, e assistir o jogo com seus amigos, terá de chegar uma hora antes da partida e só será liberado meia hora depois do fim do jogo. Meia noite e dez. Isso, dependendo da boa vontade da polícia militar, que não tem lá muito boa vontade com torcida organizada. Pode ser que Edinho fique até mais. Só que ele mora em São Miguel Paulista, lembra? E precisava chegar ao Brás antes da meia noite para ter o direito de gostar de futebol e conseguir dormir ao lado da Dona Maria, seus quatro irmãos e o Seu Francisco.

Além do que, para entrar no estádio, ele terá de chegar, no máximo, até às 20h45, o que quer dizer que o pobre coitado teria de sair lá da loja, que funciona em horário comercial, antes das 18h. Bem antes. Impossível o patrão do corinthiano aceitar, embora seja um cara justo e goste do funcionário. Mas lá em São Miguel tem uma porção de menino que aceita trabalhar até às 18h no lugar do Edinho, sem nem ganhar um salário mínimo inteiro. Tudo porque, para a Federação, quem é de torcida organizada não trabalha. Os 70 mil associados dos Gaviões da Fiel vivem do que?

Só que o pior de tudo é não entender no quê essa medida preconceituosa de enjaular torcedores e colocá-los no mesmo patamar que bandidos, tratá-los em regime especial, cercá-los com policiais e afastá-los do resto da população “mais endinheirada e formada” ajudará no fim da violência dentro de um estádio e fora dele. Mas aí o que acontece lá pela região de São Miguel já não é mais um problema da Federação Paulista de Futebol, neste conceito de cidadania meio torto. Problema é do Edinho, que, a não ser que aceite dormir na rua durante a semana (o que é pior para sua própria segurança e para brigas de torcidas) ou deixe de ver a partida com seus amigos em um setor mais caro, não poderá ir a estádio de futebol. Logo ele que é um garoto de bem.

Observação: o Edinho, nesse caso, representa qualquer torcedor organizado de futebol. Poderia ser um palmeirense, um são paulino, um santista, um ponte pretano, enfim. Mais um pobre que perde o seu direito a espaço, a lazer, a ir e vir. E os pobres desse país ficam cada vez mais sem direitos.

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