segunda-feira, 8 de maio de 2006

Jogo dos sete erros

Um posicionamento sobre quinta-feira, não só pelas cobranças, mas porque sou integrante de torcida organizada e cidadã. Chega com atraso, mas é assim que tem de ser feito: depois de ouvir muita gente, esfriar a cabeça, procurar saber, entender ação e reação, ou não entender.

Até onde vale falar que a quinta-feira para a Gaviões da Fiel começou pela manhã, quando se reuniu no Procon de São Paulo como integrante da Câmara Técnica de Desportos junto com a Polícia Militar, o Metrô, a Federação Paulista de Futebol, o Juizado Especial Criminal, a SPTrans, o Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, a CPTM, a Polícia Científica e outros órgãos do governo?

E que a reunião era justamente para falar sobre o não cumprimento do Estatuto do Torcedor e o como todos devem se comprometer com ele?

E que foi iniciativa da Gaviões da Fiel integrar a Câmara Técnica e participar de uma reunião por mês para ajudar na elaboração de soluções aos problemas que a maioria só aponta, aponta, aponta e nunca faz nada?

Deixa pra lá, assim como todo o trabalho de quem está realmente comprometido com a formação de uma massa que o Estado desova em qualquer lugar porque não está interessado nela. Falemos, então, do que todos querem saber: a noite de quinta-feira, no Pacaembu.


Jogo dos sete erros

Os oito ingressos que consegui comprar foram divididos entre os amigos que estão em todos os jogos comigo (Franz, Sid, Fabrício e Pedrão), e os amigos que me ligam não só em véspera de jogo para pedir ingresso (Júlio, Gabi e Alê). A única condição era que fôssemos de preto, ficássemos no meio dos Gaviões e cantássemos durante os 90 minutos músicas de incentivo ao Corinthians. Feito.

Cheguei cedo no Pacaembu, encontrei o pessoal e entrei no estádio, sem pegar fila ou enfrentar a muvuca que enfrento em quase todos os jogos, quando entro faltando 20 minutos para o jogo começar. Erros e acertos.

Nem participei da ação dos Gaviões contra cambistas, com o apoio do 2º Batalhão de Choque da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Na praça Charles Miller, dezenas de torcedores cercavam os cambistas, tiravam seus ingressos e distribuíam para o corinthiano que estava sem e queria ver seu time de perto. Isso porque não há nenhuma lei que impeça a ação dos cambistas.

Ocupei meu lugar e esperei uma hora e meia até o jogo começar. O estádio foi lotando e na medida em que o horário da partida se aproximava e o Pacaembu enchia era possível ouvir bombas disparadas do lado de fora. Tumulto igual ao jogo contra o Internacional, na antepenúltima rodada do Campeonato Brasileiro no ano passado. Tumulto igual ao jogo contra o Deportivo Cali, há algumas semanas no mesmo Pacaembu. Igual ao jogo contra o Tigres. Contra o Universidad Católica.

Tumulto cada vez mais freqüente, que coincide com a interrupção das conversas entre 2º Batalhão e torcidas organizadas (por iniciativa da Polícia Militar, diga-se de passagem) e da maior bagunça administrativa dos últimos tempos no Corinthians, responsável pela organização da partida.

Na minha frente, um menino mostrava orgulhoso o ingresso com o qual tinha entrado no estádio: Corinthians X São Paulo, no ano passado. Culpa de quem? Cerca de quatro pessoas se espremiam atrás de mim no degrau da arquibancada para conseguir ver o jogo. Ficou evidente que 33 mil ingressos foram vendidos, mas que havia mais do que 33 mil pessoas no estádio. As arquibancadas não conseguiam respirar, o tobogã muito menos e quem tinha pagado mais de R$ 50 reais na bilheteria por um ingresso de numerada ficou completamente amassado.

Então o jogo começou e o sonho de conquistar a Libertadores da América ficou mais próximo com um gol do Nilmar no início do primeiro tempo, anulado pelo juiz. Aos 38 minutos, o grito de gol foi legítimo quando o mesmo Nilmar balançou a rede e abriu o placar. E aí vem na cabeça aquele vizinho são-paulino que nunca te cumprimenta no elevador, mas já te zoou por não ter visto seu time conquistar um título sul-americano, e o porteiro palmeirense que antes do “bom dia” já te cobra uma conquista da Libertadores. O grito sai mais forte, o alívio é imediato.

O árbitro apitou o fim do primeiro tempo e nos demos conta de que faltavam apenas 45 minutos para que a manchete dos jornais no dia seguinte fosse: “Corinthians a poucos passos do título inédito”. Imprensa esportiva que nos lembra a cada edição do campeonato que nunca conquistamos. E a gente assume o trauma, como bem lembrou o Giorgetti, e compra o sonho.

Ainda no intervalo pensei que o frio amenizava a sede de quem não viu passar um só vendedor de água no local. Era impossível passar por ali. Impossível descer também em uma das duas pequenas lanchonetes com um ou dois atendentes sem perder metade do segundo tempo. Fiquei com sede.

O Corinthians voltou e deixou a vontade no vestiário. Nem a esperança de milhões de corinthianos, nem os altos salários a quem sequer estudou até o ensino médio foram suficientes para fazê-los jogar. Com exceção do Rubens Júnior que quis fazer história no Timão, mas sozinho ele não ia a lugar nenhum. Um, dois, três gols do River Plate e a sensação de que podia ter sido mais.

Foram-se a minha voz e o fôlego para as cantorias. E do Franz, do Júlio, da Gabi, da Alê, do Sid, do Pedrão, do Fabrício, e de cada um que estava presente naquele estádio. Catarse coletiva, interrompida por um menino que invadiu o campo e colocou o dedo na cara do Rafael Moura, do Coelho, do Tevez, não me lembro. Só me lembro de ter pensado “Fodeu”, porque quem estava lá sentiu o barril de pólvora preste a explodir.

Foi nessa hora que na cara das pessoas deu para ler o mau salário, a mulher que o traiu, o marido que te bate, o patrão que te humilha, o cambista que te cobra R$ 100 reais por um ingresso que custa R$ 15, as 10 horas de fila que enfrentou para conseguir estar ali, as dívidas que adquiriu pelo juízo ser menor que a paixão e por ter ido até a Argentina assistir o primeiro jogo, que o Corinthians também perdeu.

Como o meu emprego é bom, o salário é legal, eu folgo os fins-de-semana, meu filho é saudável, meus pais são sensacionais, meu namorado palmeirense não me bate, paguei R$ 15 reais pelo meu ingresso e não dormi em nenhuma fila para adquiri-lo, a derrota do Corinthians teve somente um peso de derrota. Nada que me fizesse descer as arquibancadas para enfrentar policial e tentar derrubar o alambrado com o objetivo de estapear cada um dos jogadores que não honra a camisa que visto com orgulho.

Pelo contrário, fiz o caminho inverso e subi a arquibancada, sinalizando aos amigos que fizessem a mesma coisa. Nem no alto era possível escapar das bombas e da pimenta, que temperou ainda mais o estádio. Os policiais, em muito menor número, acharam que a solução ideal era atirar bombas sem nenhum critério em quem estivesse usando a camiseta do Corinthians. Todo mundo era inimigo, em cima, embaixo, na frente, ao lado.

Diante disso, pulei a grade que separa as duas arquibancadas: a popular, onde ficam as torcidas organizadas, e a mais cara, onde ficam os que pagam um pouco mais, ou pela preferência ao melhor lugar do Pacaembu para se ver um jogo, ou por medo de pobre. Liguei para minha mãe e a tranqüilizei, embora fosse difícil porque ela acompanhava em casa tudo pelo rádio.

Para quem diz que os “marginais de torcida organizada” quebraram o Pacaembu pode ser um espanto tremendo saber que a reação de senhores, senhoras, mulheres e rapazes, nenhum com a camiseta da Gaviões da Fiel, Pavilhão 9, Coringão Chopp, Estopim ou da Camisa 12, era semelhante a reação dos torcedores que enfrentaram a polícia. Chutavam e arrebentavam as cadeiras laranjas, atirando no meio do gramado, atitude que chamou a polícia para aquele setor também.

Até a numerada reagiu com a violência que conhece, expulsando o ídolo Kia e seu comparsa Dualib da cativa, o que talvez me contradiga na teoria de que as pessoas reagem com violência quando são violentadas diariamente em todas as questões que envolvem suas vidas. Talvez o amor pelo Corinthians seja suficiente para esse tipo de reação, mas eu prefiro acreditar que não. Prefiro acreditar que a classe média também está com problemas.

Quando a polícia sentou o pau em quem nunca pensou em apanhar, lá na cadeira laranja, eu fiz o caminho contrário novamente e voltei para a arquibancada amarela, onde tudo estava mais controlado. Encontrei o Pulguinha chorando, enquanto um outro rapaz, também chorando, o alertava sobre um associado gravemente ferido na enfermaria. Fui com ele até lá e o cenário era de guerra: um menino praticamente sem nariz, pessoas fraturadas, desfiguradas por causa de bomba, de pancada, de tiro de borracha. Policiais e torcedores, um deitado do lado do outro.

Saí de lá embasbacada, com uma tremenda vontade de vomitar e uma sensação de que tinha tomado uma garrafa de vodca sem passar pela garganta. Deixei o estádio pela porta principal, exatamente por onde tinha entrado. Do meu lado esquerdo, toda a cavalaria da Tropa de Choque com suas espadas enferrujadas. Do meu lado direito, chuva de tiro de borracha. E bomba. Bomba por toda a praça até a Avenida Pacaembu. Não passei nem pela esquerda, nem pela direita. Fui pelo meio até encontrar a primeira escadaria do Pacaembu.

Subi ouvindo uma menina dizer que nunca mais ia ao estádio, muito menos assistiria a jogos do Corinthians para não dar ibope. Eu ainda nem tinha me dado conta de que o Corinthians estava eliminado da Libertadores. Andei até a rua onde o irmão da Alê parou o carro, achei o Corsinha branco, sentei e comecei a tremer. Nessa hora, nenhum amigo estava junto porque tínhamos nos perdido. Absolutamente todo mundo se perdeu de todo mundo. Luquinhas também teria se perdido, assim como dezenas de crianças choravam sem os pais no meio de toda aquela confusão.

Quando me dei conta de tudo o que tinha acontecido, comecei a chorar também e só fui parar na sexta-feira de noite. Não era a eliminação do Corinthians, nem o medo de nunca mais ver meu filho por causa de um jogo de futebol. Não era só isso. Era uma frustração, uma derrota pessoal de quem tem a pretensão de mudar algo que está errado por meio do futebol e não sai do lugar. De quem não deu nem dois passos a frente, mesmo com todo o esforço.

Apesar de compreender atitudes emocionais e irracionais, não apóio a ação da torcida corinthiana (e não só membros de torcida organizada), que fique claro. Primeiro porque não dava para colocar tanta gente em risco dentro do estádio. Crianças, idosos, pessoas que não tem essa vivência conflituosa no futebol e fora dele.

Era possível prever a reação da polícia militar que, a meu ver, poderia ter sido diferente. Não sou ingênua para apostar no diálogo, era impossível conversar ali. Mas ninguém nunca vai me convencer de que atirar bombas para cima, em qualquer direção, é uma atitude heróica e valente. Não é. Valentia, infelizmente, tem sido assistir jogo de futebol no Brasil quando a intenção é somente assistir o jogo.

Se eu pudesse optar por uma saída naquele momento seria deixar a invasão rolar. Já que o torcedor é tratado como gado e estava agindo como gado, deixa pastar. Não sem antes colocar todo mundo que estava ameaçado no vestiário e protegê-lo. Com paulada, pancada, cassetada, bomba, tiro de borracha. As pessoas pelo menos teriam para onde correr. Então me foi perguntado:

- Mas e os fotógrafos? O que aconteceria com os fotógrafos?
- Que fossem para o vestiário também.
- Se o fotógrafo do meu veículo não trouxesse nenhuma foto da briga ele seria demitido.

Está tudo errado, inclusive essas relações de trabalho.

Depois, é impossível apoiar porque todas as torcidas foram omissas em relação a parceria MSI/Corinthians. Como justificar essa insanidade temporária, se talvez isso fosse previsto? No dia do jogo, inclusive, saiu publicada no Estadão uma reportagem onde o Kia dizia que se o Corinthians perdesse a partida seria preciso um replanejamento. Até ele apostava, sabe-se lá de que forma, na derrota. Nós apostamos na vitória porque o nosso compromisso com o Timão é outro, embora eu tenha ouvido muita gente dizer que o Kia é corinthiano. A frustração da torcida com a derrota está proporcionalmente ligada ao que foi oferecido aos torcedores.

E como ser a favor da ação de quinta-feira quando se tem memória ou se conhece a história do nosso clube? Ficamos quase 23 anos na fila sem conquistar nenhum título e recebemos o nome de “fiel” porque a torcida continuava sempre lá, apoiando o Corinthians. Não dá para abandonar certos princípios. Fomos campeões brasileiros há menos de seis meses. Nos acostumamos com os títulos fáceis, aos montes, a qualquer custo. Com dinheiro sujo, que mancha a história do nosso time. Me admira quem foi a favor da parceria chamar de “bandido” quem resolveu enfrentar a polícia, derrubar alambrado e bater em jogador. O princípio é exatamente o mesmo: vale tudo para ser campeão.

Por fim, não dá para legitimar o que aconteceu na quinta-feira porque tenho um filho, uma mãe, um pai, a esperança de conseguir levar o Luquinhas no estádio em paz e fazê-lo se apaixonar pelo Corinthians assim como eu. Fazê-lo freqüentar uma organização popular como os Gaviões da Fiel, contestadora, com valores que aos poucos se perdem nesse caminho percorrido por toda a sociedade. Processo de perda que deve ser interrompido e que eu luto para isso, da minha maneira, com as minhas fraquezas e limitações humanas. De ser humana. E é isso que eu tinha para dizer.

NOTA: Na contagem geral, muito mais do que sete erros.

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