segunda-feira, 24 de abril de 2006

O cineasta Ugo Giorgetti durante as filmagens de Boleiros 2 - Vencedores e Vencidos

“No futebol e no mundo para cada vencedor há milhões de vencidos”

Leonor Macedo

Paulistano de Santana, zona norte de São Paulo, o diretor de cinema Ugo Giorgetti é tão alto que poderia ter sido goleiro do Palmeiras, clube do coração. O amor pelo futebol, aliás, começou nos campos de várzea do bairro, quando ainda não existia televisão disputando a transmissão dos campeonatos, pay-per-view ou a possibilidade de ir freqüentemente aos estádios. Naquela época, futebol era visto, ouvido e sentido na terra, na grama, na pedra ou no rádio.

Por falta de habilidade ou por ter tido outras oportunidades, o cineasta palmeirense decidiu unir suas duas grandes paixões nas telas dos cinemas com a produção da tragicomédia Boleiros, dependendo dos olhos de quem vê. Em 1998, reuniu um elenco de peso para contar histórias, fictícias ou não, deste mundo passional de malandragem, corrupção, risos e lágrimas, mas que é, acima de tudo, humano. Feito e vivido por seres humanos.

Agora em 2006, Lima Duarte, Otávio Augusto, Flávio Migliaccio, Denise Fraga, Paulo Miklos, Adriano Stuart, Cássio Gabus Mendes, Silvio Luiz e Sócrates voltam para o cinema no ótimo Boleiros 2 – Vencedores e Vencidos. Nessa entrevista; o filho de alguém que não estava nem aí para o futebol, irmão de corinthiano, e pai de uma corinthiana, uma são-paulina e um palmeirense; critica as ações de Lula no esporte e as administrações dos clubes, conta sobre a sua paixão pelo tema e porque é tão difícil filmar sobre algo que todo brasileiro gosta e acha que entende.

LM - A sua relação com o futebol vem dos tempos de criança?

UG - Como todo moleque do bairro de Santana, eu jogava muita bola. Engraçado porque a minha relação com o futebol começa jogando. Eu achava mais interessante jogar do que ver, inclusive porque a gente não via futebol naquele tempo. Ninguém ia. Se ia ao estádio duas vezes por ano era muito. Meu pai não tinha nenhuma aproximação com o futebol e eu nunca ia ao estádio, não tinha televisão, era só o rádio. Era muito mais legal jogar e nós jogávamos futebol pela rua. Eu sempre fui torcedor e esse time me acompanha pela vida inteira.

LM - No filme, em uma das histórias o técnico do Palmeiras (Lima Duarte) sofre um acidente. Ao passar pelo local, um torcedor grita que o Mustafá também deveria estar dentro do carro capotado. Foi uma critica pessoal? Você é palmeirense?

UG - Foi sim. Eu sou palmeirense. Tenho um irmão corinthiano, mas sou palmeirense. Em uma entrevista para a Isto É Gente, ele disse que o único motivo de briga
entre nós dois era o Corinthians e Palmeiras.


LM - Como é a produção das histórias para o filme? É um punhado de “verdade” com uma dose de ficção ou muita ficção com um pouquinho de “verdade”?

UG - Acho que um pouco dos dois. Poderia ser verdade, poderia ser ficção. Eu vou lembrando de casos, lendo, vendo e montando as histórias. Também uso outras fontes. Na história do Nestor, por exemplo, (o jogador vai para o México e quando volta, 30 anos depois, está tão diferente que ninguém o reconhece) na verdade eu li que isso aconteceu com um pugilista. Não era nem com jogador de futebol.

No Corinthians havia um centroavante, o Zague, muito fraco por sinal, mas fazia gol pra caramba, que foi jogar no México e está lá até hoje. O filho dele, inclusive, foi da seleção mexicana. Ele apareceu por aqui falando igual ao Nestor, mas a história foi inspirada em um pugilista que foi lutar no México, ficou por lá e quando voltou tinha mudado tanto o aspecto e a maneira de falar que ninguém reconheceu o cara.

LM - No Boleiros 2, você relaciona a venda de um jogador com a escravidão. O atleta é oferecido e tem que mostrar os dentes. O jogador é um escravo, branco ou negro, bem ou mal-remunerado?

UG - Eu acho que isso acontece com todo trabalhador brasileiro, não só no futebol. Os laços entre patrão e empregado são muito complicados. O futebol é uma chance muito grande de você fazer dinheiro rápido, sem ser ilegal. Se você não vende droga, futebol é o melhor negócio para fazer dinheiro. Eu acho que as pessoas fazem qualquer coisa pra ter dinheiro e eu não estou criticando. Eu faria a mesma coisa. Pô, ficar esperando na favela alguém vir me dar uma chance? O desemprego é infernal, então eles fazem qualquer coisa e o empresário também faz qualquer coisa. Vende até a mãe. Essas relações são complicadas. O Paulo Miklos faz o empresário do Marquinhos (o craque da seleção que é um grande ídolo no exterior) e é ele que domina. Ele que arrumou o bar, que trata da mulher do cara, do irmão do cara, ele cuida de tudo. O cara está blindado, dentro de uma redoma. Quem vê o filme nem sabe exatamente o que o Marquinhos pensa. E ele não sabe da própria vida. Não controla mais a vida dele.

LM - Você vai a estádio?

UG - Não, eu não vou a estádio porque o Palmeiras é muito ruim. Eu moro perto do Parque Antártica e sempre fui a pé. Enquanto tiver esse time eu não vou. Eu ia, junto com meu filho palmeirense. Além dele, tenho uma filha corinthiana e uma são-paulina. Família democrática. Mas só vou se o time for muito bom. Eu estou acostumado a ver times do Palmeiras muito bons. Agora que está isso daí...

LM - Mas não há algo que te chame para assistir o jogo no estádio mesmo com o Palmeiras ruim? A energia da arquibancada, dividir a raiva ou as alegrias com outros torcedores?

UG - O Palmeiras já está há muito tempo ruim. Não é de agora. Já está essa brincadeira faz tempo. A última vez em que ele esteve bem foi em 98, 99, até 2000 dava para aturar. São mais de cinco anos que está ruim. Chega. Mas o problema é que está muito ruim lá dentro. Na administração. Tem que mudar tudo. O Corinthians também. Palmeiras e Corinthians são gêmeos nesse sentido.

LM - Siameses.

UG - Eu coloquei no filme aquela passagem em que o São Paulo perde o título para o Botafogo, do Rio de Janeiro. Eu nem fui no Corinthians para propor que fossem eles. No Palmeiras, eu só consegui falar porque o Belluzzo (conselheiro da oposição palmeirense) interferiu. Ligou para a diretoria e disse: “É um cineasta de nível”. Então me encaminharam para falar com um cara horrível, mal educado. Nos primeiros contatos com o Corinthians, eu já vi que bateria cabeça igual aconteceu no Palmeiras. Logo desisti.

No primeiro filme, eu fui direto na Gaviões. Nem fui no Corinthians. Quem me deu a licença para usar o nome dos Gaviões e a camiseta foi o Douglas Deungaro (Metaleiro, ex-presidente da organizada). Ele que assinou.

No São Paulo, você é recebido primorosamente. Completamente diferente. Cheguei lá, disse que o São Paulo perderia o jogo no filme e eles responderam que não teria o menor problema. A única coisa que eles quiseram saber era a camiseta que seria usada na cena. É tudo organizado. Por isso que o São Paulo é tri-campeão do mundo, atual campeão da Libertadores.

LM - Administração também ganha títulos?

UG - Não tenha dúvida. Administração de futebol é fundamental para isso. Então enquanto estiver isso daí no Palmeiras eu não volto para o estádio.

LM - O personagem do Lima Duarte (nos filmes ele é técnico de futebol) é uma mistura de Felipão com Luxemburgo?

UG - Olha, ali tem um pouco de tudo. Telê, Brandão... O Lima (Duarte) é um antigo torcedor. São-paulino doente, já foi conselheiro do clube e tudo. Eu o coloquei de técnico do Palmeiras de propósito nos filmes. É o símbolo do conservadorismo. Uma figura em extinção.


LM - Vocês cogitaram a possibilidade de chamar algum jogador famoso para interpretar o Marquinhos?

UG - Cogitei e chamei. Chamei o Denílson porque eu o acho muito engraçado. Bom ator, muito cativante, afável, vivo. Eu fui atrás dele e ele achou ótimo. Só que o problema dele, como o de outros jogadores, é que ele tinha 20 dias de férias em julho. Não dava para filmar em 20 dias.

LM - Quando vocês terminaram de gravar o filme?

UG - Em abril do ano passado.

LM - Vocês tiveram que esperar a Copa para estrear?

UG - Não. A Copa só atrapalha esse filme porque nada tem a ver com a Copa. A copa é um acidente.

LM - Pra falar da Argentina você pensou no Corinthians?

UG - Não. Tem muito jogador brasileiro que jogou no Boca Juniors. O Orlando (Peçanha de Carvalho), quarto-zagueiro da seleção brasileira de 58, foi capitão do Boca por três anos. No ano passado, a gente fez o favor de mandar o Baiano para o Boca. Nosso lateral-direito. Eles acolhem muito mais brasileiros do que nós acolhemos os argentinos aqui.

LM - O argentino aceita mais o brasileiro do que vice-versa?

UG - Não. Eu acho que é coincidência. Hoje em dia é raro argentino jogar aqui, mas antigamente era muito comum. Vinha muita gente para cá. O Corinthians era um dos poucos clubes que não aceitava estrangeiro. O São Paulo e o Palmeiras sempre tiveram jogadores estrangeiros. Lembro-me quando veio o Artime (centroavante argentino) para o Palmeiras e ele era muito bom.

LM - Do Boleiros 1 para o Boleiros 2 houve um processo de glamourização do futebol. O Bar do Aurélio (cenário onde se passa o filme) teve de se adaptar e foi reformado. Antes dessa glamourização e dessa mercantilização, o futebol era melhor?

UG - Eu acho que o mundo era melhor. Porque no momento em que o dinheiro entra de tal forma em uma atividade você não sabe mais o que é verdade e o que não é. Você não sabe o que é uma simples publicidade para aceitar uma situação ou se realmente aquilo é fato. Então, talvez o futebol fosse mais real.

O futebol atual é muito bom. É um erro se falar que o futebol atual é ruim, porque ele é ótimo. Alguns jogadores têm um nível excelente. O grande problema é que eles estão jogando fora. Imagine só o Ronaldinho, o Ronaldo, todos eles jogando aqui, que maravilha seria o Campeonato Brasileiro. Eu acho que o futebol de antes era melhor em um ponto: ele era do povo. Ninguém da classe média se preocupava muito com o futebol. O jornal tinha meia página que contava o resultado do jogo: Corinthians 3 X 1 Ferroviária, Palmeiras 4 X 1 XV de Piracicaba. Era isso e acabou. Tinha o rádio que te dava mais cobertura, transmitia o jogo e havia os comentários à noite. Era só isso. Era mais genuíno. Era o jogo mesmo.

LM - Um lazer.

UG - Era o grande lazer do povo. Por isso que ninguém se preocupava. Porque era coisa do povo. “Deixa isso pra lá.”

LM - Você acha que se o futebol foi mercantilizado ele tem que ser politizado?

UG - Eu não faço muita relação entre política e futebol. Nunca fiz. O que acontece é que a partir de um momento o futebol foi sendo apropriado pelas autoridades. Começa com o Juscelino, que não era esse santo que a Rede Globo tenta mostrar (na minissérie JK). Para mim, ele era um idiota. Eu já tinha 13 anos quando ele foi eleito e me lembro bem. O Juscelino começou e isso foi crescendo até 1970, quando a ditadura, como toda a ditadura, se apropria do futebol como um feito dela. Era um orgulho nacional. Daí isso começou pra valer.

LM - Existe um monte de deputados e vereadores ligados aos conselhos dos e as diretorias dos clubes.

UG - Isso é inevitável. Essas pessoas começaram a perceber que o futebol era uma força eleitoral. O Ademir da Guia (ex-craque do Palmeiras) foi eleito (deputado federal pelo PC do B e agora vereador pelo PL). Mas mesmo assim eu nunca achei que um torcedor palmeirense seria capaz de achar que se o Palmeiras estivesse ganhando do Corinthians isso compensaria seu desemprego. Isso é ridículo. Achar que o futebol pode iludir o povo a esse ponto. “Olha, você ganha um salário mínimo, mas seu time foi campeão do mundo então está tudo bem, você é feliz”. Isso é achar que o povo é idiota.

O pessoal que saía na rua para gritar pela seleção de 1970, na mesma época do nacionalismo da Ditadura, fazia porque o time era maravilhoso e não por causa do regime militar. Eu queria torcer para o Brasil perder e os militares não faturarem, mas não conseguia porque o time era maravilhoso. Dava orgulho de ver jogar. Essa história de política e futebol é muito ambígua. As pessoas falam que o futebol é usado para enganar o povo. Não engana nada.

LM - Você acredita que o futebol é uma metáfora para o País?

UG - O futebol não é uma metáfora para o País. O futebol é o País. Ele pertence à sociedade. Tudo o que pertence à sociedade está no futebol e tudo o que está no futebol também está na sociedade. Porque ele faz parte da sociedade. Se a sociedade é violenta, tem violência no futebol. Algumas pessoas querem comparar que aqui tem violência nas torcidas, mas na Inglaterra eles conseguiram acabar com isso. Lá eles deram um nível social incomparavelmente melhor do que o Brasil. Lá realmente quem faz bagunça são quatro vagabundos e a Justiça os proíbe de irem aos estádios. Mas a violência do futebol brasileiro começa na sociedade. A nossa sociedade é escravocrata, ela explora e o dirigente explora também. Ele reproduz o que é reproduzido no resto do Brasil. O futebol é assim. O Boleiros tem uma qualidade de examinar o Brasil através do futebol.

LM - Mudando o futebol muda o Brasil?

UG - Não. É o contrário.

LM - Partindo do micro para o macro não há mudança?

UG - Não acredito. Uma vez participei de uma discussão na casa do Juca Kfouri (jornalista corinthiano) falando isso. Tinha um grupo onde eu liderava que achava isso uma loucura. Como mudar o Brasil por meio do futebol? O outro grupo que acredita nesse caminho pode ser até que tenha razão, mas eu acho uma verdadeira loucura. O dono do Lance!, por exemplo, o Walter (de Mattos Júnior), acha que mudando o futebol você dá um passo importante para mudar o País.

LM - Eu também acredito nisso.

UG - Você pode estar certa. Mas isso é exatamente o que fez o cristianismo. Partindo de uma pequena aldeia, você conquista o mundo. Demorou exatamente 300 anos. Eu acho que é uma possibilidade e acho que tem de ser feito. Sou contra o imobilismo. Mas acho que deve ter uma outra estratégia de pressão. Primeiro lá em cima.

Eu entendo tudo no presidente Lula. Juro que entendo tudo o que aconteceu. A única coisa que eu não entendo no Lula é como um homem do povo, corinthiano, não tem nenhuma ação no esporte. Nenhuma ação no esporte. Então não adianta você fazer no micro, se não muda lá em cima. Se a torcida se mobiliza para tirar o MSI (parceria investidora do Corinthians) do País, por exemplo, por conta das suspeitas de dinheiro ilegal, vem outro MSI se não mudar lá em cima.

O presidente é um cara que acompanha os jogos, super ligado ao futebol, vive fazendo metáforas com os resultados do Corinthians e o Ministério dos Esportes é isso que nós vemos. Não moveu uma única palha em quatro anos de governo.

O presidente, por gostar de futebol, deveria tomar alguma medida contra a evasão dos jogadores de futebol. Isso sim é privar o povo de seu lazer. Antigamente alguns jogadores também iam jogar no exterior, mas eram os jogadores excepcionais. O resto ficava aqui e os excepcionais eram substituídos rapidamente. Agora até os ruins estão indo para lá. Os ruins de bola. O Tadei (ex-palmeiras) é titular do Roma.

Nisso é preciso que o Governo se apresente. Questão de segurança nacional. Olha o que acontece no Rio de Janeiro. É um horror. Estão liqüidando uma tradição. Multidões estão sem time. Como um cara pode torcer pelo Flamengo? Tinha que ter uma intervenção federal nisso. É grave. É o lazer do povo, é tradição brasileira. Mas nada é feito. Eu acho importante tirar os Mustafás da vida, os Dualibs, eu até ajudaria. É uma ótima ação e tem que ter, mas para mudar mesmo a estrutura da coisa tem que vir lá de cima.

LM - No Boleiros 2, as mulheres são retratadas como as Maria-Chuteiras, como a jornalista que detesta futebol ou como a juíza carrancuda e durona. Cadê a torcedora que realmente gosta do futebol? Ou as histórias de mulheres que querem jogar bola?

UG - Não me ocorreu, mas não é nada demais. Talvez seja a minha falta de aproximação com o assunto.


LM - No filme, o jornalista Zé Américo não tem a pretensão de escrever um livro. Ele busca as histórias porque ele gosta de futebol e está desempregado. Empregada está a jornalista que não gosta de futebol. Você acredita que a imprensa esportiva que está empregada, em grande parte, é superficial e não consegue enxergar o lado humano do futebol?

UG - Não acho. Se eu achasse, essa opinião teria mudado depois do Boleiros 1 porque eu encontrei gente da crônica esportiva muito boa. Hoje, a imprensa esportiva é bastante razoável. Antigamente também existiam jornalistas ótimos, mas em menor número. O problema da crônica esportiva é que ela adquiriu proporções enormes. Hoje existem cadernos de esportes e jornais especializados. Antes, os jornais especializados eram marginais. Como ela era muito pequena, ela abrigava o jornalista que gostava muito do negócio. À medida que ela adquiriu uma importância muito grande, começou a chamar colaboradores. Há um pouco de mito nessa história de dizer que a imprensa esportiva é ruim. Ela era menor. Hoje ela é enorme, então também tem jornalistas muito ruins. Tirando uns imbecis que todos nós conhecemos, em geral ela é formada de gente muito interessante.

LM - No futebol, quem são os vencedores e quem são os vencidos?

UG - É fácil. Os vencedores são como o Marquinhos, que joga na Europa e está em alta, e seus empresários. Os vencidos são todos os outros.

LM - Os torcedores são vencidos?

UG - Não tenha dúvida. No meio dos torcedores, também há os vencedores, mas para cada vencedor há milhões de vencidos. No futebol e nas outras questões colocadas no mundo.

LM - O Boleiros 1 foi lançado em 1998 e o Boleiros 2 agora, em 2006. O que mudou no futebol de lá para cá?

UG - Em 1997, o Rivaldo jogava no Palmeiras. O Djalminha, o Luizão, todos em plena forma. Não só no Palmeiras, mas tinha esse tipo de jogador no Brasil. Não há jogadores assim no Brasil hoje. Tem o Gamarra (zagueiro palmeirense) com trinta e tantos anos, o Juninho Paulista (meio-campo) com milhares de anos. Esse êxodo no futebol é uma coisa bem recente. Virou uma febre. O Grafite (ex-atacante do São Paulo) vai embora para a França e você se pergunta o que sobra. Isso é grave.

Estamos falando em São Paulo que tem o futebol mais poderoso do Brasil, mas e os clubes fora daqui? No Rio de Janeiro, o Dodô é ídolo do Botafogo. Nas últimas vezes que eu fui no Parque Antártica eu queria “matar” o Dodô. Tecnicamente ele é um bom jogador, mas ser ídolo no Botafogo? Acabou, o futebol no Rio de Janeiro não existe mais. Eu fui lançar meu filme em Porto Alegre recentemente e aconteceria um Grenal (clássico entre Grêmio e Internacional). Todos os torcedores do Grêmio achavam que tomariam uma goleada. O time é muito fraco.

LM - Você esteve na quadra dos Gaviões da Fiel durante a semana da Democracia Corinthiana, em agosto de 2002. Como foi para um palmeirense participar de um evento tão corinthiano?

UG - O evento foi fantástico e para mim foi engraçado porque eles passaram um pedaço do Boleiros 1, o que faz referência a Gaviões da Fiel, e o Washington Olivetto que estava na mesa comigo disse: “Olha, queria avisar que ele é palmeirense”. Eu esperei a reação dos associados e todo mundo disse: “Tá tudo bem, a gente deixa ele ser palmeirense...”



LM - O filme passa uma idéia de malandragem, da corrupção, da escravidão. Sem isso não existiria o filme?

UG - Existiria, mas seriam outras histórias. O tempo, por exemplo. O problema do tempo curto que um jogador tem para jogar futebol. Os ex-jogadores do filme Boleiros 2 que conversam no Bar retrata um pouco isso.

LM - Aliás, o Sócrates era o único que bebia a cerveja do cenário?

UG - (risos) Todos bebiam. Quem não bebia era o Flávio.

LM - No Boleiros 1, uma das histórias mais marcantes é a do juiz Virgílio Pênalti. Foi profético ou já se conhecia algum caso de picaretagem no apito?

UG - Outro dia eu dei uma entrevista para a Folha de S. Paulo e colocaram como manchete o que eu falei: eu acho o juiz ladrão necessário para o futebol. É importante que haja o juiz ladrão. Faz parte do imaginário do torcedor. Se você retira o juiz ladrão isso é uma perda para o futebol, para o imaginário do futebol. É bom para a honestidade do futebol, mas para o imaginário é ruim. Quantas vezes você se consolou quando o Corinthians perdeu porque você teve certeza que foi roubado? Roubado nada, pô! Mas é um consolo para o torcedor, uma justificativa, é uma possibilidade misteriosa. “E se foi roubado? E se não fosse?”.

LM - O juiz ladrão é quase inofensivo?

UG - Ele também repete a sociedade. Se você falar: “vou extirpar todas as pessoas desonestas da sociedade e só vamos ter atos que a gente tenha a certeza que são honestos”. Só pode ser brincadeira. Uma vez eu fui com o Otávio Augusto (ator que interpreta o juiz ladrão) em um encontro de veteranos do Palmeiras. Só naquele encontro apareceram dois casos como o do Virgílio Pênalti. Isso sempre existiu.



LM - Em menor escala que o Edílson?

UG - Talvez em menor escala. O Palmeiras tinha um zagueiro que conta uma história fantástica. Ele era zagueiro central. O Turcão, muito bom o cara. A equipe estava sem tomar gol há não sei quantas partidas. Era um absurdo para a época. Estava uma loucura. Aí o Palmeiras foi jogar com o Corinthians. Um a zero para o Corinthians e esse cara fez um gol contra. Imagina a situação dele? Gol para o Corinthians e contra dele. Ele ia casar dali um tempo e dois dias antes da partida tinha ido a uma loja com a noiva dele e comprou geladeira, fogão e um monte de coisas para a casa. Pediu para entregarem no primeiro dia útil da semana seguinte. Aí aconteceu essa tragédia no fim-de-semana. Segunda-feira, encostou na casa do cara um puta caminhão e começou a descer geladeira, fogão... E a vizinhança enfurecida: “Esse cara ganhou dinheiro do Corinthians!!!! Está ganhando um monte de presente!!”. Demorou mais de dois anos para o povo parar de encher o saco do Turcão. Era telefonema, xingamento na rua.

LM - Como veio o convite para escrever a coluna semanal no Estado de S. Paulo, no caderno de Esportes?

UG - Foi por causa do Boleiros 1. Eu não conhecia ninguém do Estadão. Claro que eles devem ter pedido uma indicação para o pessoal do esporte. Depois consultaram o pessoal do Caderno 2 para saber o que eles achavam. Aí eles me chamaram. Mas durante esse tempo todo que tenho a coluna, fui só duas vezes ao Estadão. Escrevo de casa e mando. Eu gosto, acho legal. Não escrevo sobre os jogos da rodada, sobre isso não sei escrever.

LM - Você pensa em fazer mais continuações do Boleiros?

UG - Não, acho que não. Dava uma bela série de televisão, isso sim. Fazer um episódio de 30 minutos, duas historinhas rápidas, com um jogador contando. O Sócrates, por exemplo. Ele poderia contar as histórias. Isso seria legal. Mas acho que já está bom de longa-metragem.

LM - Não existem muitos filmes sobre futebol. Por quê?

UG - Não tem. É complicado fazer filme sobre futebol. É muito difícil, por uma série de razões do próprio tema. É muito abrangente.

LM - Por que é difícil falar de futebol em um País onde todo mundo acha que entende de futebol?

UG - Essa é uma das grandes dificuldades: você fazer uma coisa que todo mundo é um crítico em potencial. Se você der uma mancada, terá uma maioria que perceberá a mancada. Outra coisa é escolher que segmento de futebol você vai usar. É preciso fechar em um tema. Trabalhar com a história, ou com o momento atual do futebol. Comparar as duas coisas.

E um grande problema é o público. Eu estou convencido, e isso é verdade, que é a mulher que escolhe qual filme será visto. As mulheres vão mais ao cinema do que os homens. Quando elas vão acompanhadas, têm uma influência enorme na escolha do filme. E as mulheres em geral ainda não têm uma aproximação tão grande com o futebol. O Boleiros 1 não foi muito bem no cinema. Ele foi normal, só isso. Com os anos ele cresceu. E vai acontecer exatamente assim com o Boleiros 2. Ele não vai estourar. Quando as mulheres assistem em casa, no vídeo, elas acham legal e aí o filme decola.

É também muito difícil transmitir o que esse filme é realmente. Não dá para chegar nas mulheres e falar: “Olha, pode ir tranqüila que esse filme não é sobre futebol. Você verá um filme sobre seres humanos”, porque o filme é de futebol. Se disser que não é, você espanta os homens.

Além disso, o povo não vai ao cinema. O povo assiste televisão. Ele não pode ir porque custa 15 paus o ingresso. Então o cinema vira um reduto de classe média. Futebol não faz parte do repertório temático da classe média. Eles preferem o relacionamento entre casais, crianças com seus pais, criança abandonada. Isso são alguns temas que a classe média gosta de ver. Têm mil outros. Mas o futebol não faz parte desse repertório. Não é um dos temas aceitáveis para a classe média.



LM - Você acha que o futebol é a ponte que liga as classes sociais?

UG - Em certa medida sim. Mas é uma liga retórica. Do tipo: “eu sou milionário, você mora na favela, nós conversamos por causa do nosso time do futebol”, mas é só naquele momento. As classes se comunicam por causa do futebol. É um elo de comunicação. O que eu sei de futebol é o que você sabe, independente da sua classe social, ou da minha.

LM - Dá para viver hoje só de cinema?

UG - Depende. Eu vivi muitos anos da publicidade. Mais de 30 anos. O dinheiro que vem não corresponde ao trabalho. Se não fosse subsidiado, se no Brasil não existisse a Lei de Audiovisual, o cinema acabaria amanhã.

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Para assistir ao trailer de Boleiros 2 – Vencedores e Vencidos, acesse http://www.spfilmes.com.br/content.aspx?Node=26.

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