quinta-feira, 2 de março de 2006

Sobre o fim deste carnaval para os Gaviões

A decisão tomada pela Gaviões da Fiel de não pertencer mais ao carnaval de São Paulo, realizado pela Liga das Escolas de Samba, e de abandonar a Uesp (União das Escolas e Samba Paulistanas) passa longe do “não brinco mais”.

Não é nenhuma vergonha fazer parte do Grupo de Acesso e vale lembrar que recentemente estivemos por lá. Depois de um acidente em 2004 envolvendo um de nossos carros alegóricos, fomos rebaixados e desfilamos no Acesso em 2005. Fizemos um desfile de alto nível e imbatível.

Assim subimos para o grupo das principais Escolas e nele estava a recém-especial Escola de Samba Mancha Verde, também proveniente de torcida organizada, como os Gaviões da Fiel. O Estatuto da Liga previa que se duas ou mais agremiações ligadas à torcidas organizadas estivessem no Grupo Especial teria de ser criado um dia a parte para que elas pudessem desfilar. Desse dia, sairia uma campeã que integraria o Grupo Especial no ano seguinte para a disputa do título. Confuso? Nem tanto. Poderíamos ser campeões só de dois em dois anos.

Desde o princípio, os Gaviões não aceitaram tal apartheid, muito menos as argumentações da Liga de que não tínhamos tradição em samba, por isso não poderíamos concorrer mais no Grupo Especial. Entramos na justiça e foi fácil ganhar porque:

- isso é discriminação (o mesmo que proibir um sambista de torcer nos estádios).
- grande parte das Escolas de Samba nasceu dos times nos campos de várzea.
- por mais de 15 anos integramos o Grupo Especial e fomos quatro vezes campeões.

E olha que nem precisamos usar os três motivos para que a Justiça nos concedesse liminar que devolvia um direito adquirido há muito tempo, depois de anos no carnaval de bloco e mais de dez títulos de campeão nessa condição. Qualquer coisa que fosse dita já faria o presidente da Liga, Alexandre Marcelino Ferreira, gaguejar por semanas para defender seu ponto de vista. Aliás, nem seu é.

Durante todo o ano, de liminar em punho, reunimos nossa comunidade (e é comunidade de verdade, onde 80% das pessoas que trabalham freqüenta a arquibancada no decorrer dos campeonatos e come feijoada na quadra de sábado) e trabalhamos em um desfile grandioso como sempre foi desde os tempos de Escola de Samba. Investimos tempo, dinheiro, esforço físico, empenho ao longo de meses para que o resultado pudesse ser mostrado em pouco mais de uma hora de desfile.

Para quem não sabe, os R$ 2 milhões de reais gastos no decorrer do carnaval é proveniente de: direito de transmissão da Rede Globo dado a todas as Escolas, Prefeitura de São Paulo também a todas as Escolas, mensalidade dos associados (temos 70 mil sócios), ensaios (quem já foi em um sabe quanta gente tem naquela quadra e como essas pessoas consomem), lojinha (somos uma torcida do Corinthians e qualquer coisa colocada à venda esgota em um dia. De fim-de-semana é preciso enfrentar uma fila de quase duas horas para comprar algo na loja) e venda de fantasias (sai caro para quem não pertence à comunidade. Eu desfilei de graça).

O dinheiro arrecadado é destinado única e exclusivamente para a compra de materiais de desfile e pagamento do pessoal que trabalha no Barracão e vive dessa produção. Feitas essas considerações (importantes para uma maior informação de quem anda bem desinformado e sai falando por aí), voltemos à retrospectiva.


Depois de um ano todo de trabalho, a duas semanas do desfile, a Liga resolveu desfazer um “mal entendido”: os Gaviões conseguiram na Justiça o direito de desfilar, mas não de pontuar. E depois de um dia todo de gargalhadas (porque só podia ser piada), voltamos aos tribunais e nosso advogado, sem suar, conseguiu que o Juiz entendesse diferente: era claro que poderíamos concorrer já que estávamos desfilando no Grupo Especial.

Na sexta-feira, dia 24, abrimos o carnaval de São Paulo e o que se viu foi um desfile bonito, animado, empolgante e luxuoso. A arquibancada compareceu em peso novamente (ingressos que esgotaram absurdamente rápido porque em qualquer dia que a Gaviões desfile certamente será o dia que encherá mais), cantou o samba, dançou, pulou.

Para quem estava na Avenida, como no meu caso, foi ainda mais emocionante e cabe um pequeno relato da experiência: do Dentinho ao Neto, da Assessora (que não gosta muito de carnaval) ao repórter da BBC, rolaram muitas lágrimas tamanha é a vontade que aquela comunidade tem de fazer algo bonito.

No final, um pequeno erro de cálculo assumido pela diretoria: muitos convidados e pouco tempo para que toda essa turma passasse pelo portão. Dois pontos a menos de atraso. Depois soubemos que perderíamos mais dois pontos por merchandising (aquele tipo de anúncio que alguns leitores por aqui conhecem bem), já que não tínhamos coberto o nome de uma marca de gerador. Cabe aqui dizer que em nenhum momento os Gaviões receberam qualquer quantia para divulgar o nome do anunciante por aí. Seria fácil provar que não se tratava de um merchandising.

E na apuração a grande surpresa: como uma espécie de retaliação para a nossa “rebeldia” de não aceitarmos o lugar escolhido pela Liga para que nossa Escola pudesse desfilar, foram apenas quatro notas 10, em 30 recebidas. O samba bem feito, as alegorias e as fantasias luxuosas, a bateria empolgante, nada disso tinha sido suficiente para os jurados que, inclusive, nem devem ter visto o desfile. Foram tomar uma ou outra ali na esquina (é carnaval, minha gente) e voltaram para apurar a Rosas de Ouro, escola seguinte.

Por causa dos erros, não esperávamos ser campeões. Mas em momento nenhum passou pela cabeça de toda aquela comunidade que seríamos rebaixados. Nem dos comentaristas da Globo isso passou porque a todo momento, durante a apuração, eles demonstravam estranheza com as notas recebidas. Ficou clara a bandalheira. Assalto televisionado.

Talvez não tenha passado pela cabeça de nossa comunidade, mas quem conviveu minimamente com a Liga podia esperar algo semelhante. Nós esperávamos, tanto que soltamos uma nota na quinta-feira dizendo o quanto a Gaviões confiava na isenção dos jurados diante de toda a nossa batalha judicial, desde maio de 2005 até então. Mas não foi o suficiente porque eram apenas palavras.

Quem é a Liga?


O meu primeiro contato direto com a Liga foi logo no começo da gestão do Pulguinha e do Tonhão, quando ocorreu a festa da posse do novo presidente, Alexandre Marcelino Ferreira. As diretorias das Escolas foram convidadas para o evento e lá fomos nós, com ternos e roupas alugadas porque o traje exigido era social completo. O que se viu foi uma verdadeira baixaria: o pobre Alexandre mal conseguiu falar porque quem manda ali não é ele. Até que o Sólon Tadeu, presidente da Vai-Vai, não agüentou mais as gaguejadas do coitado e decidiu mostrar quem realmente manda ali.

Metade do evento foi para discursar em favor do ex-presidente Robson, exatamente com essas palavras:

- O Robson roubava? Roubava! Mas agora a gente vai sentir falta dele.

E como futebol e samba quase nunca se separam, o Sólon também misturou tudo em seu discurso:

- É como o Farah. Ele roubava, mas agora que ele saiu todo mundo vai sentir falta dele.

Vi um Paulo Maluf do samba falar e falar por alguns bons minutos sobre um “rouba, mas faz”. A outra metade do discurso foi para agredir os Gaviões da Fiel. Ali, ele mostrou o que eu já tinha ouvido falar: os Gaviões incomodam absurdamente algumas grandes Escolas de Samba porque ela veio para tirar a hegemonia dessas agremiações. Principalmente da Vai-Vai.

Na ocasião, o conselho da Liga também foi apresentado e funciona quase igual às administrações de futebol. Com o microfone em punho, o Sólon apresentou um por um: “Esse é meu grande amigo tal, esse é meu primo fulano de tal, meu filho fulano de tal e tal (também presidente de Escola de Samba), esse é meu caseiro ciclano” e por aí foi. Lembrei dos 300 conselheiros nomeados pelo Dualib no Corinthians.

A noite também foi coroada pela fala do presidente do Anhembi que citou a importância de trazer cada vez mais turistas para dentro das Escolas. Como isso gerava dinheiro para a cidade e como gerava dinheiro e dinheiro e dinheiro para os fulanos e ciclanos. Naquele dia me lembro bem de ter pensado que estávamos no lugar errado e que nenhum dos Gaviões pertenciam a esse esquema.

Lá pelo fim da festa, enquanto eu e Pantchinho comíamos comidas chiques e tomávamos cerveja, saiu um reboliço. O Bart, na época diretor de carnaval, foi conversar com o Sólon, que retribuiu com uma bela cabeçada. Devíamos ter saído ali, naquele momento, mas adiamos essa discussão na quadra.

Depois, rolou tudo o que rolou. Desde que me enfiei por completo nos Gaviões da Fiel não concordo com nossa participação nesse carnaval da Liga por motivos óbvios: as questões da torcida e do Corinthians ficam sempre para segundo plano. É difícil protestar, falar, chiar, discutir qualquer assunto que não seja carnaval pela mais completa falta de tempo. Não é fácil colocar um carnaval na Avenida. Quando conheci a estrutura da Liga, alguns outros argumentos foram somados aos meus já feitos.

Como os Gaviões entraram no carnaval

Com o surgimento dos Gaviões da Fiel, em 1969, nasceu uma outra forma de torcer que levou para as arquibancadas instrumentos de percussão. Na época, os clubes pagavam fanfarras para animarem as torcidas, mas os Gaviões foram além: levaram os gritos, os cantos e um samba muito mais animado para os campos.

Anos depois veio a idéia de montar um bloco de carnaval. Nossa sede era ainda na Santa Ifigênia e o desfile ocorria na Avenida São João. Vez ou outra coincidia de um jogo do Corinthians ocorrer no mesmo dia dos desfiles e quando voltavam para a sede, os Gaviões passavam entre os foliões, antes dos blocos, e levantavam o público.

Foi idéia do dirigente da Vai-Vai, Ângelo Fasanella, que nos tornássemos bloco. A princípio, em 1975, montamos um bloco na própria Vai-Vai e já no ano seguinte conquistamos a nossa independência. Assim, formamos nosso próprio bloco de carnaval, que começou do samba e futebol e do futebol e do samba. A velha história do “ovo ou a galinha”.

Quando os Gaviões brincavam na Avenida São João, sem fantasia e sem pretensões, sem disputa e sem vaidade, sem ego, sem dinheiro, só pela folia, nem imaginavam que o carnaval dentro da nossa instituição tomaria essas proporções. Tomou, mas não era para tomar.

Por isso, a discussão é antiga dentro da sede de não mais participar desse carnaval, bem antes de sermos roubados descaradamente, diante de milhões de telespectadores. Isso só foi a gota d’água e a idéia já era amadurecida na entidade há algum tempo. Tem muito mais a cara dos Gaviões um desfile popular, na rua, sem dinheiro, sem vaidade, sem ego, sem Rede Globo (porque nenhuma revolução, mesmo a dos confetes e serpentinas, será televisionada). Porque a folia deve ser só compromissada com a nossa história e nossa comunidade.


Agora nós abrimos a discussão para as outras Escolas de Samba, blocos e para todo mundo que sonha em desfilar no Anhembi com a sua comunidade. Vale a pena? Depende daquilo que se quer. Para os Gaviões não vale mais a pena, mesmo que a Escola de Samba tenha segurado as pontas da torcida quando ela foi ameaçada de fechar as portas. Se tivermos de fechar por qualquer motivo, que a nossa existência seja galgada em bases mais sólidas e menos poluídas.

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