sexta-feira, 7 de abril de 2006

Da dor e da delícia de ser Corinthians

Nem adiantou a promessa de tentar não roer as unhas até o casamento do Rafael na próxima semana. Tinha um jogo do Corinthians no meio do caminho. E a partida era no Chile, longe de nossa vista (mais distante ainda do corinthiano porque o jogo só seria transmitido via TV a cabo), da possibilidade de gritar na arquibancada e ser escutado. Ou pelo menos da sensação de ser escutado.

Quando o Corinthians disputa uma partida decisiva longe do Brasil (nem que a decisão seja passar ou não para a segunda fase de um título nunca antes conquistado) a preparação me lembra a do dia em que mamãe deixou eu ir ao shopping pela primeira vez só com meus amigos: fiquei um mês combinando para ver quem ia junto, pensando em como seria cada momento, imaginando, fantasiando e quanto mais o grande dia se aproximava, mais a ansiedade me tirava o sono.

Assim foi para essa partida. Semanas antes eu já tentava reunir os grandes amigos, decidir o local em que veríamos o jogo e absolutamente todas as possibilidades davam errado. Se fulano queria assistir no Estádio Museu em Preto e Branco, no Tatuapé, ciclano achava que o bar era muito caro. Se ciclano falava em ver o jogo no São Cristóvão, na Vila Madalena, beltrano se recusava porque era muito cheio. Se beltrano sugeria o Terceiro Tempo, na Barra Funda, fulano nem pensava na hipótese já que tinha certeza de que lá estaria cheio de palmeirense. Ou encontraríamos o Milton Neves.

Até que a salvação foi anunciada pelos Gaviões da Fiel poucos dias antes: o jogo seria transmitido na quadra, com telão e churrasco de graça para todos os corinthianos que comparecessem. Não poderia ser melhor. Combinamos quem iria, quem daria carona para quem, que horas estaríamos por lá.

Dois dias antes do jogo, liguei para o Tonhão, presidente dos Gaviões, para saber como estava a caravana para o Chile:

- Tá tudo bem, Lê. Eles ainda não chegaram, mas estão quase lá.
- E aí na quadra? Tá tudo preparado? Carne comprada, telão instalado?
- Não vai rolar telão não, Lê. Só uma televisão com o cabo.

Como assim uma televisão? UMA? Imaginei aquele monte de gavião se amontoando para conseguir enxergar o Corinthians na Philco que as “tias” da cantina vêem o Vídeo Show enquanto cozinham o almoço durante a semana, na quadra. Televisão cheia de fantasma, provavelmente sem entrada a cabo. Catástrofe.

- E agora? E agora? – perguntei para a Mari, psicóloga-corinthiana-amiga de plantão para os momentos de crise e não-crise.
- Agora já combinamos. Vamos do mesmo jeito.

E lá fomos nós ontem, torcendo para que a TV pegasse porque seria impossível não enfartar ouvindo Corinthians e Universidad Católica no rádio. Não com aquela zaga.

A boa notícia é que logo que chegamos vimos uma moderna televisão de 29 polegadas e muitos, muitos amigos que só se encontram em dia de jogo, pelas arquibancadas. A má notícia é que Johnny Herrera, goleiro reserva do Corinthians, tinha sido escalado como titular, mesmo sendo chileno. Mas os amigos estavam ali para isso.

Como seria impossível telefonar para a NET, ficar cliente com um pacote básico, esperar os funcionários da operadora chegarem para instalar na moderna televisão de 29 polegadas os canais a cabo, tudo em meia hora, fizemos um gato (e não me perguntem onde já que os Gaviões da Fiel estão rodeados de galpões abandonados e da Marginal Tietê) e voilà: SPORTV, o canal campeão.

O pessoal da Velha Guarda arrumou uma televisão pequenina para dividir a atenção do povo da quadra que era numeroso. Perto da TV menor ficaram as pessoas que queriam assistir sentadas, com calma (se é que isso era possível). Senhores, senhoras, mulheres com crianças. Ao redor da televisão de 29, a bateria e o povo do Poropópó. Eu comecei assistindo ao jogo atrás de uma pilastra, perto da tevezinha. Mas estar na muvuca era como ficar mais perto do Corinthians e lá fui eu.

Aos cinco primeiros minutos eu já estava sem os esmaltes na unha, que tinha passado para evitar o vício de levar a mão na boca sempre que o nervosismo vem. Tudo porque, aos dois minutos o Universidad Católica abriu o placar, com direito a goleiro caindo para dentro do gol e zagueiro trapalhão. Ai, a nossa zaga. Se um dia eu tiver uma úlcera, vou homenagear o pai e chamá-la de Wendel.

Mas se o goleiro chileno é ruim de cá, é ruim de lá também e o gol de empate saiu 20 minutos (de sofrimento) depois. Não que o Corinthians estivesse ameaçado, ele jogava bem melhor. É que o Timão costuma tropeçar nas próprias pernas. A virada e o alívio vieram aos 36, mas duraram exatos dois minutos. Que história é essa de corinthiano não sofrer? Tem que e ponto final.

Lá na quadra, nem sinal de unhas mais. E quando eu me preparava para roer os dedos e os cotovelos com a expulsão do Wendel, no comecinho do segundo tempo, o GV, que sofre do mesmo mal que eu, deu a brilhante idéia :

- Come a borda do copo de plástico!

Bingo! 35 copos plásticos depois, o Carlos Alberto fez a sua melhor jogada desde que chegou no Corinthians e deixou o Nilmar de frente pro goleiro. Foi difícil segurar a vontade de chorar com o terceiro gol do Timão. E a vontade de abraçar o desconhecido do meu lado também, que naquele momento era como um espelho: o mesmo olho cheio de lágrimas, o grito engasgado, as unhas roídas, o coração acelerado.

Depois da expulsão do Gustavo Nery, com dois jogadores a menos em campo, ganhando o jogo heroicamente e o Universidad Católica jogando debaixo da nossa trave, deu para sentir o fenômeno de ser corinthiano mais uma vez. Parece que quando a equipe é raça pura e dá o sangue dentro de campo (com algumas exceções) se cria uma ligação direta com a torcida, onde quer que ela esteja. A milhares de quilômetros de distância. Assim ficou fácil ser escutado pelos jogadores.

- SAIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII – grítavamos na quadra, no meio do Bom Retiro.

E a bola saía pela linha de fundo, no Chile.

- TIRA ESSA MERDA DAÍ, PÔ – esbravejávamos na quadra, no meio do Bom Retiro.

E lá ia o Mascherano, com categoria, no Chile.

- OLHA O LADRÃOOOOOOOOOOOOOO – alertávamos na quadra, no meio do Bom Retiro.

E, como se nos ouvisse, na capital do Chile, o Tevez desviava do zagueiro e desfilava com todo o seu futebol.

Delícia sofrer assim, mesmo que um princípio de Wendel grite no seu estômago. Aos 40 minutos, começamos a contagem para o apito final. 41 ! 42 !! 43 !!! 44 !!!! 45 !!!!! E mais quatro de ascréscimo dado pelo péssimo árbitro. 46 !!!!!! 47 !!!!!!! 48 !!!!!!!! Falta um, falta um!

Até que, no último minuto, uma das crianças que vivem correndo para lá e para cá dentro da quadra, jogando futebol com latinhas de cerveja, encostou a mão no gato e...Lá se foi o sinal da tv a cabo. Depois do grito coletivo, corremos para a tevezinha, atropelando senhor, senhora, mulher, criança e quem mais estivesse pela frente. E o pessoal da tevezinha correu para a tevezona porque não tinha nenhum sinal por lá também. Gatos siameses.

Da mochila, um Jesus Cristo desconhecido tirou seu walkman e colocou o fone. E, em silêncio, as centenas de pessoas que estavam na quadra o rodearam como se fossem receber a redenção. Cena de filme. O menino não falava. Ouvia o rádio e esperava. E esperávamos.

- Acabou !!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Não conseguimos ver a comemoração dos jogadores no fim do jogo, como foi publicado nos jornais, mas ao soar o “acabou” do menino como um apito do árbitro, a quadra explodiu em abraços, lágrimas, alegria, rojões, carne torrada, banho de cerveja, planos para ver um jogo na Argentina, no México, em Tóquio. Teve até quem se esforçou para devolver o sinal à tevê e viu o VT da partida.

Eu fiquei pensando no que vai acontecer com o Brasil quando o Corinthians conquistar uma Libertadores da América, tamanha é a loucura que é torcer para esse time. E imaginando, fantasiando, como se tivesse 9 anos, os próximos jogos que virão. Porque não há nada que vicie mais do que o sofrimento e a alegria inexplicáveis de ser corinthiano.

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